Você não gosta do Big Brother. Já entendemos isso, pois você repete esta frase sem parar, de janeiro a março, todos os anos nos últimos onze anos. Já entendemos que você diz que lê Dostoievski e acha o BBB um lixo cultural.
Eu te entendo, pois em geral eu também não gosto do BBB, me dá uma angústia, um constrangimento em tantas cenas, que prefiro não assistir, muito embora eu tenha assistido – com gosto – o BBB em que Jean Wyllys concorreu.
O BBB11 me interessa especificamente porque traz em sua dinâmica uma série de questões éticas relevantes para quem estuda Direitos Humanos. E a grande protagonista destas questões é Ariadna Thalia, nascida “Tiago”. Ariadna é transexual e realizou uma muito bem sucedida cirurgia de readequação genital na Tailândia. Cortou fora seu pinto de jegue pênis de proporções avantajadas e, ao que parece, tem atualmente a aparência física de uma mulher muito bonita, do tipo que muitos homens desejam. É sabido que dispomos, atualmente, de uma muito eficiente tecnologia para readequações genitais, sobretudo no caso de transexuais que nasceram homens. E se você tem dinheiro para operar na Tailândia, sai de lá não apenas “mulher”, mas uma mulher muito bonita. Sem pênis, sem “gogó”, com cordas vocais alteradas, em suma, mulher.
O lance é: ao que parece, Ariadna Thalia (adoro esse nome, essa mescla de heroina grega com cantora brega) NÃO irá contar que é transexual para seus parceiros no BBB11. E eu aprovo. Bem faz ela. Custo a entender por que diabos uma pessoa transexual, depois de resolver seu problema, tem que sair se apresentando o tempo todo da seguinte maneira:
- Oi gato, você tá me paquerando? Eu gostei de você. Meu nome é Ariadna, e eu sou TRANS.
Ora, quem é transexual ou tem amigos transexuais, sabe como é intenso o sofrimento de uma pessoa que se vê num corpo absolutamente dissonante em relação à sua identidade de gênero. Não se trata de frescura ou melindre, como dizem alguns. É algo tão estrutural na pessoa, que beira o desespero. Se a pessoa não tem o apoio e tratamento adequados, desenvolve problemas sérios de autoestima. Alguns chegam a tentar amputar o próprio pênis, e é muito comum a tentativa de aplicação de silicone industrial, entre transexuais provenientes de classes pobres. Um transexual típico olha para seu órgão genital e sente repulsa. Agora imagine se você é transexual, como no caso da Ariadna, que nasceu não com um mero pênis, mas com uma piroca PRIÁPICA no meio das pernas? Ela deve ter sentido grande alivio ao se livrar daquilo. E virou uma mulher aparentemente bem fornida.
Por conta deste sofrimento, tudo o que a pessoa quer é esquecer, deixar seu pinto passado para trás. A Medicina avançou, o Direito ficou pra trás, e é mais fácil fazer a cirurgia de readequação do que modificar algumas complicações burocráticas, como o lance do nome. Alguns juizes dão ganho de causa e liberam a alteração dos documentos do cidadão. Outros, intransigentes, não aceitam o pedido, e fica lá a figura, um mulherão, com um documento onde se lê JOÃO PEDRO ou outro nome supermacho.
Não é, entretanto, consensual que Ariadna tem o direito de não sair por aí se apresentando como transexual o tempo todo. Há quem diga que ela tem a obrigação moral de dizer, sempre. Não concordo. Acho que isso é querer torturar a pessoa sem necessidade. Pra que ela tem que carregar este estigma pro resto da vida? Fez a cirurgia, se readequou? Pra mim, é mulher.
O primeiro argumento contra a omissão de Ariadna é o mais comum: num relacionamento, é preciso dizer a verdade. Também acho, muito embora algumas coisas sejam totalmente desnecessárias e até possam ser ditas num contexto de maior intimidade. Além disso, é questionável o que significa “dizer a verdade” o tempo todo. Significa relatar pormenores de problemas médicos que eu já tive? Devo me apresentar às pessoas dizendo que já sofri de HEMORRÓIDAS?
Se você discorda, me explica o seguinte: você arranja uma namorada magrinha, uma gata. Só que ela já foi obesa mórbida, fez uma cirurgia para redução do estômago, ou seja, cortou um pedaço de si e ficou do jeitinho que você gosta.
Com o transexual não é diferente. Ele corta um pedaço de si – o pênis – e readequa seu corpo, virando uma mulher gostosa. E aí? Por que a ex-obesa não tem a OBRIGAÇÃO MORAL de sair por ai o tempo inteiro se apresentando como ex-gorda, mas Ariadna tem obrigação de se apresentar como transex? Por que esta “colagem” na identidade não é cobrada da ex-gorda, mas é cobrada do ex-homem?
Aí você pode vir com o segundo argumento: porque Ariadna não pode ter filhos, e tem que ser sincera com seu namorado.
Concordo. E se ela disser que não pode ter filhos porque tem um problema genético, vai estar mentindo?
Note bem: não estou defendendo que Ariadna (ou qualquer outra pessoa) NÃO deve dizer que passou por cirurgia de readequação genital. Estou dizendo que ela diz SE ELA QUISER, isso é algo que faz parte do desejo DELA, e ela não deveria se submeter ao desejo ALHEIO. E eu acho até bom que ela diga que já foi homem, pelo motivo simples de que não devemos ter vergonha de nossas biografias, e nossas origens fazem parte de nós, ainda que não estejamos escravizados por elas. Mas existe hora pra tudo, principalmente para dizer as coisas, sejam elas quais forem. O Brasil inteiro já sabe que Ariadna nasceu Tiago. Em teoria, seus colegas de confinamento não sabem. No mundo real, não é muito diferente: tem muita mulher por aí que não nasceu mulher, é paquerada pelos homens, por eles desejada, e isso não é nenhum embuste. O desejo é real, lide com isso. Se seu desejo vai mudar depois que você descobrir que aquela gostosona já foi macho um dia, isso é problema seu, e não dela.
Ariadne é o nome de uma heroina mítica que ajuda seu amor, Teseu, a desvendar o labirinto do Minotauro. A nossa Ariadna tem um labirinto muito mais complexo para enfrentar e um monstro pior do que o Minotauro pela frente: o monstro do preconceito, também ele um hibrido: corpo de gente, cabeça de jumento. Desde já, torço por ela aprioristicamente, porque por ela, e só por ela, TALVEZ o Big Brother Brasil traga questões interessantes à baila.
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